Explorando a Diversidade no Cinema LGBTQIAP+ e o Olhar dos Diretores Queers



O cinema, a sétima arte, é rica em enredos emocionantes, engraçados, aterrorizantes, dramáticos e entre outros. O cinema LGBTQIAP+ é responsável por representar as vivências de pessoas marginalizadas perante a sociedade. Reunimos aqui filmes de diretores Queers que exploram essas narrativas com sensibilidade e autenticidade, oferecendo uma janela para as experiências, lutas e celebrações da comunidade LGBTQIAP+.


Reflexões Sobre Identidade e Amor em 'God's Own Country' de Francis Lee

Francis Lee nasceu no final dos anos 60, em Halifax, uma área rural na Inglaterra, aos vinte anos se mudou para Londres pois segundo o mesmo as oportunidades na área criativa na sua região eram inexistentes. Seu primeiro trabalho como diretor foi no curta The Farmer 's Wife (2012), logo em seguida dirigiu o curta Bradford Halifax London (2013). Em 2017, God 's Own Country foi lançado, o primeiro longa do diretor, que o garantiu 39 indicações e 32 vitórias em premiações de cinema. O último trabalho do mesmo foi o longa "Ammonite’’ (2020).


Em God’s Own Country, Francis escreve com maestria Jhonny, personagem interpretado pelo magnífico Josh O’connor (Challengers, 2024), o jovem vive com seu pai e sua avó em uma área rural isolada, trabalha na fazenda diariamente e fica bêbado em seu tempo livre. O personagem claramente está vivendo um dilema consigo mesmo, se vê preso no lugar onde reside tendo que lidar com trabalho manual árduo e um ambiente familiar nada acolhedor. Gheorghe, um imigrante romeno, é contratado para ajudar Johnny na fazenda, trazendo em sua bagagem sentimentos que Johnny não está tão preparado para sentir. Quando perguntado se God’s Own Country foi baseado em suas experiências pessoais, Francis diz:


“Então, God 's Own Country , você está certo, não era nada autobiográfico [risos], mas fui eu explorando como era estar em um relacionamento e explorando essas dinâmicas, e muitas dessas coisas eram muito pessoais para mim.”


Os problemas com álcool do protagonista são claros ao que o filme se inicia com uma cena do mesmo vomitando no banheiro após uma longa noite de bebedeira. Johnny usa do álcool para abafar seus pensamentos sobre o futuro e até mesmo seu presente. É palpável que o mesmo é um sujeito cujo os sentimentos foram reprimidos desde sempre, a relação com seu pai é hostil e superficial, quase como uma relação de patrão e funcionário, sua avó não se envolve muito, desenvolvendo um papel apenas nas tarefas domésticas da casa. Johnny é solitário, não tem amigos, e se contenta em ter relações sexuais rápidas com estranhos em banheiros, sua personalidade é quase uma muralha, levantada com intenção de esconder sua vulnerabilidade. Jhonny representa bem como é viver sendo um homem gay em uma região onde não se é bem visto ser você mesmo, e é visível durante o decorrer do filme como o personagem se livra das suas barreiras emocionais ao conhecer Gheorghe. 


O incômodo de Johnny com a chegada de Gheorghe, o imigrante romeno é um personagem questionador, que não precisa de muito tempo para compreender a dinâmica da vida de Johnny na fazenda, "Aqui é um lugar bonito... Quando eu era pequeno nunca pensei que deixaria minha fazenda. Aqui é um lugar bonito, mas solitário, não acha?" indaga Gheorghe em certo momento.  A construção da relação entre os dois acontece rapidamente e de forma crua, durante os dias juntos afastados da fazenda cuidando do rebanho na montanha. De uma relação conturbada, para um intenso interesse sexual e terminando em um relacionamento repleto de afeto.


Porém Johnny não se vê digno de amor, e aos poucos suas inseguranças começam a atrapalhar a evolução de seu relacionamento com Gheorghe, os toques, olhares e planos para o futuro oferecidos por Gheorghe o assustam. Francis Lee trouxe uma temática recorrente nas relações amorosas de pessoas Queers, o fato de não nos sentirmos dignos de amor faz com que nos privemos de viver o mesmo. O personagem de Josh O’connor nunca desenvolveu relações de afetos, e quando se vê inserido em uma relação intensa o mesmo se sente sufocado. 


Amar requer esforço, dedicação e afeto, e Johnny nunca viveu nada parecido antes, o medo de ser vulnerável é quase tão grande quanto o amor que o mesmo sente por Gheorghe. Francis representa todas essas emoções em um longa rico em detalhes, uma fotografia linda aos olhos e um roteiro apaixonante. 


A maioria dos longas com temáticas LGBTQ+ são sobre como  é difícil ser diferente, ou as consequências do que é ser diferente em uma sociedade onde o ódio nos consome, sempre carregando uma tragédia no final, quase que dizendo “Se você for assim, é isso que vai acontecer com você!”. Mas em God 's Own Country, Francis Lee conta uma história de amor, sem dilemas sobre sexualidade e aceitação, mas sim sobre o medo de se sentir vulnerável perante sentimentos e que somos merecedores de sentir e explorar essas emoções sem medo das consequências. Johnny é o exemplo do que a masculinidade tóxica pode causar, e Lee conseguiu nos mostrar que mesmo no lugar mais pacato no interior da Inglaterra pode existir amor.


Entre Ringues e Cabarés, a Vida de João Francisco dos Santos Sob a Lente de Karim Aïnouz

Karim Aïnouz é um diretor cearense natural de Fortaleza, teve sua estreia como diretor de cinema com o filme “Madame Satã”. Aïnouz costuma dizer que não sabia o que estava fazendo em “Madame Satã”, Karim sabia que queria contar a história de João Francisco dos Santos, quando leu sua biografia e percebeu que o nome de uma boate paulista, que frequentava na época que fazia faculdade de arquitetura em Brasília, fazia referência a figura emblemática da vida noturna carioca do início do século XX, o diretor que ficou fascinado com esta figura que em suas palavras era muito sub-representada na história e no audiovisual brasileiro.

“Madame Satã” (2002), filme que conta a história de João Francisco dos Santos. O longa aborda vários aspectos da vida de João Francisco, um homem negro e gay que vivia à margem da sociedade na década de 1930 na Lapa no Rio de Janeiro. Seu amor pela arte e sua vontade de subir em um palco, sua sexualidade, seus trabalhos e suas malandragens são abordados na obra de Karim Aïnouz.

O drama semi-biográfico conta a história de vida de João até o momento em que ele fica conhecido como Madame Satã, a convivência com Laurita, a prostituta mãe de Firmina; Tabu, uma travesti que também se prostituía; e Renatinho, com quem vive um breve romance, são adições impecáveis que somam ainda mais a personalidade multifacetada de Francisco. Durante o filme pode-se perceber  a complexidade de João como personagem: um homem negro que lutava capoeira e tinha um temperamento forte, muitas vezes ligado à masculinidade heteronormativa, bem como era homossexual e demonstrava certa sensibilidade artística. Um personagem complexo, com camadas, que desafia estereótipos de gênero e sexualidade da época e que continua desafiando estereótipos de raça e sexualidade até hoje.

Um momento muito marcante do filme é a contradição de João ao ser confrontado com insultos homofóbicos, fazendo algo que  jurou que jamais faria. As camadas e vivências de um homem que passou por muitas dificuldades em sua vida e que tem muita raiva dentro de si são demonstradas nessa cena. Karim diz que esse momento de hipocrisia do personagem é o que o torna vulnerável, vivo e apaixonante, algo que falta em vários personagens que são criados para representar ou contar histórias Queers e LGBTQIA +. Ele enfatiza a importância de personagens que erram, acertam e tem suas imperfeições. A Madame Satã ou João Francisco dos Santos era um artista, capoeirista e malandro que viveu a vida ao seu máximo, João era e é uma figura que representa muitos brasileiros que vivem marginalizados e sonham com uma vida digna.


A Importância do Filme "Nunca Fui Santa" e da Diretora Jamie Babbit para o Cinema Queer

No final dos anos 1990, quando "Nunca Fui Santa" ("But I'm A Cheerleader") foi lançado, a visibilidade LGBTQ+ estava em ascensão, embora ainda enfrentasse resistência significativa. A sociedade da época ainda estava lutando com questões de aceitação e compreensão das identidades queer, e filmes que abordam essas questões abertamente eram raros e frequentemente recebiam reações mistas.

Lançado em 1999, "Nunca Fui Santa" é uma comédia satírica dirigida por Jamie Babbit, que aborda temas complexos e sensíveis como a terapia de conversão e a aceitação da orientação sexual. O filme segue a história de Megan Bloomfield, uma líder de torcida adolescente que é enviada para um acampamento de terapia de conversão quando seus pais e amigos suspeitam que ela seja lésbica. No acampamento, Megan começa a questionar suas próprias crenças e identidade, levando a uma jornada de autodescoberta e aceitação.

O filme utiliza a sátira para destacar a absurdidade dos estereótipos de gênero e as tentativas de forçar os indivíduos a se conformarem a uma norma heterossexual. As cores vibrantes e os cenários exagerados do filme não são meramente estéticos, mas sim uma ferramenta para amplificar a crítica social. Ao subverter expectativas e brincar com clichês, "Nunca Fui Santa" consegue transmitir uma mensagem poderosa sobre autenticidade e resistência.

A inclusão da terapia de conversão no enredo do filme não apenas expõe a crueldade e a ineficácia dessas práticas, mas também serve como uma crítica mordaz aos esforços de certos segmentos da sociedade para controlar e moldar a identidade sexual dos indivíduos. 

Uma das contribuições mais significativas de "Nunca Fui Santa" é sua representação positiva e bem-humorada de personagens LGBTQ+. Em um momento em que muitos filmes retratam essas identidades de forma trágica ou estereotipada, Babbit ofereceu uma alternativa refrescante. A personagem principal, Megan, não é definida exclusivamente por sua sexualidade, mas sim por sua jornada pessoal e crescimento, algo que ressoa profundamente com o público.

A diretora é uma figura crucial no cinema Queer. Sua carreira é marcada por uma dedicação à criação de conteúdos que exploram a identidade sexual e desafiam normas sociais. Além de "Nunca Fui Santa", Babbit trabalhou em várias séries de televisão e filmes que continuam a explorar temas LGBTQ+, contribuindo para uma maior visibilidade e aceitação. Seu estilo é caracterizado por um equilíbrio entre humor e crítica social. Babbit não apenas entretém, mas também provoca reflexão e discussão, elementos essenciais para qualquer movimento social significativo.

Babbit nasceu em 1970 em Shaker Heights, Ohio, e sua carreira cinematográfica começou no início dos anos 90. Seu interesse em temas LGBTQ+ surgiu de sua própria experiência como mulher lésbica e sua paixão por contar histórias autênticas e significativas. A recepção inicial do filme foi dividida. Alguns críticos não entenderam ou apreciaram a abordagem satírica de Babbit, vendo o filme como uma comédia leve sem perceber a profundidade de sua crítica social. Outros, no entanto, reconheceram a importância do filme em abordar temas difíceis de uma maneira acessível e envolvente. Com o passar dos anos, o filme foi reavaliado e agora é amplamente reconhecido por seu impacto cultural e social.


Confira o mais recém episódio do nosso podcast Pod Manera, onde discutimos sobre porque a grande maioria dos filmes LGBTQAP+ terminam em tragédias, e falamos um pouco sobre os gêneros além do dramático no cinema queer: https://youtu.be/RqC30fqtKVI



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